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3.08.2015

Federalismo falido

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Há crises que têm causas internacionais em seu núcleo. Outras têm uma centralidade federal, ligada ao desequilíbrio financeiro – o que se via com frequência antes do Plano Real e da Lei de Responsabilidade Fiscal. Há ainda turbulências mais pontuais, normalmente ligadas à produção, que afetam regiões dependentes de determinado setor. Já a crise que está em curso afeta toda a Federação. De alto a baixo. Dos municípios à União, passando por praticamente todos os estados. Tem causas múltiplas e complexas. Gera efeitos em todas as direções. Não perdoa ninguém. E é a prova mais provada da falência do federalismo brasileiro.

Nosso sistema, na forma em que se encontra, não tem mais eficiência. Essa que é a grande verdade. As responsabilidades de cada ente e os respectivos financiamentos não estão clara e equilibradamente estabelecidos. Quem faz o que e de onde vem o dinheiro? Em relação a quase todas as atividades, essa resposta será dúbia, complexa ou até mesmo inexistente. Há sempre sobreposição ou ausência do aparato estatal, mas quase nunca uma clareza de funções e recursos.

Vejamos o que ocorre agora. Há um perigoso desajuste das contas públicas federais. Por erro de gestão fiscal, sem dúvida. Mas esse problema, que poderia ser apenas do ente nacional, automaticamente se transporta para os mais recônditos lugares do país. Diversos estados estão financeiramente desequilibrados. Muitas categorias em greve. Eles mesmos não conseguiram construir sua sustentabilidade, também é verdade. Mas não é menos verdadeiro que a relação com a União é muitas vezes perniciosa para o ente que fica no meio do caminho. Em relação aos municípios, não é diferente – senão até mais grave. Aquele que é o poder mais próximo da comunidade funciona, em nosso sistema federativo, infelizmente, como mero coadjuvante – embora não seja na vida real.

A matéria federativa é constitucional. Mudar exige, portanto, de uma reforma estruturante. Mas isso não impede que, desde logo, os entes tomem suas iniciativas e façam mudanças que dependem de sua própria articulação. Quando não, são simples medidas de ajuste. Note-se no caso da União. Está caindo de madura a oportunidade para propor uma redução equilibrada do aparato estatal, especialmente no que concerne aos cargos de confiança. Não por ideologia, mas por necessidade. Diante de uma crise como essa, fechar pelo menos dez ministérios seria uma sinalização importante tanto para a sociedade quanto para o mercado. A diminuição do custeio da máquina pública ainda é uma tarefa em aberto.

A questão da dívida dos Estados com a União também deixa evidente essa falência federativa. A renegociação ocorreu numa hora oportuna, durante o governo Fernando Henrique, no final da década de 90. Ao contrário do que muitos apontam, a repactuação foi feita nas condições que, naquele momento, eram adequadas. Entretanto, as circunstâncias começaram a mudar logo em seguida – e isso foi alterando também o equilíbrio do contrato estabelecido. A nova política monetária em vigor fez com que o juro crescesse, levando consigo o crescimento da dívida. Por outro lado, a inflação caíra e, em vista disso, os estados perderam a receita que dela provinha.

O maior contrassenso, contudo, reside no indexador sobre o qual o cálculo vem sendo atualizado ao longo desses anos. Essa federalização se deu sobre o Índice Geral de Preços-Disponibilidade Interna (IGP-DI) mais 6% de juros. Ocorre que, com a mudança da realidade macroeconômica, o IGP-DI deixou de ser usado até mesmo pelo Governo Federal. Sua correção está muito acima dos índices utilizados atualmente, mesmo para o setor privado. Isso gerou uma distorção gigantesca e um enorme prejuízo para os estados nos últimos anos, que – mesmo não contratando novos financiamentos – só viram o estoque da dívida aumentar.

As contradições não acabam por aí. O limite de comprometimento da receita corrente líquida dos estados, previsto para o pagamento do débito em questão, atualmente fixado em 13%, também se configura num visível exagero. Isso esvazia demais a capacidade local de investimento, relativizando até mesmo os princípios federativos e a autonomia dos entes. E se os governos estaduais não pagarem, automaticamente são bloqueadas as transferências da União. Há um engessamento orçamentário e jurídico.

Todos esses temas, que poderiam ser fruto de uma demorada abordagem, compõem esse desajuste do sistema federativo brasileiro. É algo difícil de mudar tanto em período de crise, porque todos temem perder receita, quanto em período de normalidade, porque o problema parece ficar menor diante de outros. E assim nós vamos, lamentavelmente, tolerando tamanhas contradições em nosso cenário cotidiano. Mas é preciso continuar formando opinião. Um novo Brasil passa por um novo federalismo.